quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O ÌPÀDÉ

Babá Thonny ty Oyá


A finalidade deste texto não é escrever um tratado sobre o ìpàdé, visto que o assunto é bastante amplo, não sendo possível exauri-lo em poucas linhas. Pretendemos, no entanto, de modo despretensioso, apresentar algumas informações básicas sobre essa tão importante cerimônia dos cultos de origem africana que está caindo no esquecimento ou, quando não, sendo modificada/simplificada em muitas casas de Candomblé.

Diferente do que é praticado na maioria das casas de culto aos orixás, o ìpàdé é uma cerimônia mais complexa que o ato de cantar para Èṣù e ao final das cantigas ofertar o  “mi-ami-ami”, espécie de farofa feita de farinha de mandioca com azeite de dendê ou com outra iguaria (cachaça, água, mel entre outros) — Comumente chamado de pàdé —, espargir uma porção de água de uma quartinha de barro e acender uma vela em um dos cantos da porta de entrada.

Assim sendo, queremos, inicialmente, diferenciarmos o ìpàdè do pàdé para que não existam dúvidas, ao final, sobre o que estamos chamando de ìpàdé. A palavra pàdé ganhou duas acepções na maioria das casas de culto no Brasil: tanto é usada para designar o ato de cantar para Èṣù, quanto para se referir ao “mi-ami-ami”. Ademais, a mesma expressão (pàdé), segundo o dicionário de língua yorùbá de José Beniste, é utilizada para denotar reunião de pessoas e não farofa feita de farinha com dendê ou com qualquer outra iguaria. Salienta-se que a palavra ìpàdé aparece, no dicionário pesquisado, traduzida também como reunião assim como a palavra pàdé.

Outro importante equívoco que merece ser dirimido neste texto é o fato de o ìpàdé não ter a função de despachar Èṣù. A belíssima cerimônia do ìpàdé serve, inicialmente, para louvar e agradar Èṣù que é o mensageiro entre o homem e os demais orixás e também para louvar outras entidades conforme veremos mais adiante.  Èṣù fala a língua dos homens e a língua dos orixás. É ele quem leva as súplicas e mazelas dos homens aos orixás e quem traz as respostas do òrún (céu, firmamento) às dúvidas humanas. O ìpàdé não deve ter a conotação de presente para que Èṣù não perturbe a cerimônia e sim de presente para que ele, como mensageiro, faça a ponte entre o homem e os orixás e não deixe que nada de mal aconteça enquanto é realizada a cerimônia principal, ou seja, a festa aos orixás.

O ìpàdé é uma cerimônia, eminentemente, feminina nas casas de Candomblé, é celebrado pela ìyamoró, apoiada pelas filhas mais velhas da casa, preferencialmente, pela ajimuda,  pela dagan e pela sidagan, ao som de cantigas cantadas pela iyá tèbèsé, sob o controle e supervisão do babáloìṣá e/ou ìyálorìṣá, mas isso não significa que outras mais velhas não possam participar do ato. Os homens participam tocando os instrumentos e respondendo as cantigas apenas. Somente a iyamoró tem o poder de entrar e sair do templo durante o ato do ìpàdé haja vista ter ela recebido a cabaça que afasta as grandes mães.

Para o cerimonial do ìpàdé é depositado sobre o centro da casa um alguidar (prato de barro) contendo “mi-ami-ami” feita de farinha de mandioca com azeite de dendê, uma quartinha com água límpida, uma vela acessa e pratos com as comidas de preferência dos ancestrais.

Como se sabe, o ìpàdé é dirigido acima de tudo a Èṣù, no entanto são celebrados outros entes importantes para os cultos de matriz africana, tais como os Eguns, os Egunguns e os babás Eguns (antepassados), os essá (mortos ilustres no candomblé), às grandes mães Ìyámí (Osoronga, Opaoká e Ajé Salunga). Por fim, são celebrados os orixás dos mais antigos considerando a linhagem de cada raiz.

Depois do ìpàdé, os ritos seguem normalmente conforme o planejamento de cada casa. Salienta-se que essa cerimônia serve para retirar o ajé (as energias negativas) para que os demais ritos sejam coroados de êxito, de harmonia, de tranquilidade e de paz.

Metodologia:

I. É uma cerimônia interna da casa, por isso é recomendável que apenas os de casa participem.
II. Arriar um alguidar com o mi-ami-ami, preferencialmente, feito de farinha com azeite de dendê, uma quartilha de barro contendo água fria e límpida, comidas preferidas dos ancestrais (se for o caso), vela acesa, tudo no centro da casa.
III. Devem participar dos atos principais apenas os cargos indicados no texto acima.
IV. Canta-se na sequência para Exu, ancestrais, Yamins, Oxum (primeira mãe de santo) e orixás da linhagem.
V. Ao cantar para Exu, ancestrais e Yamins, a ìyámorró acompanhada de suas auxiliares sai com o mi-ami-ami, a quartinha de água, as comidas dos ancestrais e a vela para fazer as oferendas conforme cada casa.
V. Ao retornar, são orquestrados os cânticos para os demais orixás reverenciando os santos da linhagem, do bisavô, do avô, do pai etc.

Vocabulário:

Ajé: energia negativa.
Ajé Salunga: uma das três Ìyámí.
Ajimuda: cargo feminino responsável pelos carregos da casa, auxilia no ìpàdé.
Babá Egun: espíritos de antigos babalorixás.
Babáloìṣá: sacerdote afrodescendente.
Dagan: cargo feminino responsável por fazer os preparativos do ìpàdé.
Egun: alma ou espírito de qualquer pessoa falecida.
Egungun: espírito ancestral de pessoa importante para os cultos afros.
Essá: pessoas já falecidas que devem ser reverenciadas no oxé.
Èṣù: Orixá africano responsável pelos caminhos; senhor dos caminhos, senhor do movimento.
Ìpàdé: cerimônia de louvação e entrega de oferendas a Èsù e aos ancestrais de uma casa de candomblé.
Ìyálorìṣá: sacerdotisa afrodescendente.
Íyámí: As grandes mães feiticeiras, aquelas que detém o segredo da criação.
Ìyámoró: Principal  responsável por dirigir o cerimonial do ìpàdé.
Ìyátèbèsé: porta-voz do orixá da casa, pessoa feminina que dirige os cânticos.
Mi-ami-ami: farofa de farinha com dendê, água, mel, azeite, cachaça.
Opaoká: uma das três Ìyámí; árvore sagrada para os yorubás
Òrún: céu.
Osoronga: uma das três Ìyámí.
Osidagan: auxiliar da Ìyádagan
Otundagan: auxiliar da Ìyadagan
Pàdé: reunião de pessoas de uma determinada sociedade. No Brasil é o nome mais conhecido para a farofa de farinha de mandioca dom iguarias líquidas oferecidas a Èxú, ver mi-ami-ami.
Yorùbá: iorubá, idioma nigero-congoles que é falado no sul do Saara, na África, e no Brasil.

Referências:
BENISTE, José. Dicionário yorùbá português. São Paulo: Bertrand Brasil, 2013.

ATENÇÃO! Este texto tem como proposta apresentar, de modo muito panorâmico e modesto, a cerimônia do ìpàdé que, como o passar dos tempos, vem se perdendo e/ou sendo simplificada nos terreiros de candomblé do Brasil. Esta proposta poderá ser ampliada com os comentários e postagens feitas pelos leitores. Assim sendo, peço que não economizem contribuições. Antecipadamente agradeço a todos os que lerem e contribuírem com o estudo sobre o ìpàdé.

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