segunda-feira, 27 de junho de 2016

WÁJÌ, OSÙN, ẸFUN: O PODER DAS PINTURAS NO CANDOMBLÉ

Por Thonny Hawany

Introdução

A pintura corporal tem sido, ao longo dos tempos, um importante elemento de manifestação de identidade da maioria dos povos. Sua utilização, quase sempre, serve-se para delimitar e demarcar a importância que um indivíduo tem para o seu clã e também para reconhecer a que sociedade esse mesmo indivíduo pertence.

A pintura corporal não é privilégio das sociedades antigas e aborígenes. Ela está no cotidiano de quase todos os grupos sociais contemporâneos, a exemplo da maquilagem usada para rejuvenescer, embelezar, enaltecer, demarcar tendências, formas de pensar e agir; está também nas tatuagens impressas por todas as partes do corpo com as mais variadas intensões e nas pinturas tribais com significados tão diversos que, segundo nossas suposições, não conseguiríamos enumerá-los todos.

Em face da prolixidade do tema, ater-nos-emos apenas a pintura corporal como marca religiosa dos povos africanos de cultura iorubana. Para esses povos, a pintura vai além das marcas tribais de identificação do grupo e do clã, constitui parte do sagrado, são substâncias que servem de alimento espiritual e de proteção contra forças que podem investir esforços malévolos contra o indivíduo e o seu clã (ègbé).

Para delimitar ainda mais o nosso tema, dedicar-nos-emos às pinturas como importantes marcas cerimoniais nos ritos do Candomblé, feitas utilizando o wájì, o osùn e o ẹfun.

Como esses elementos possuem especificidades, trataremos deles a seguir, um a um, de forma a particularizar suscintamente seus conceitos, suas origens, suas características, seus usos e representações.

Wájì

O wájì (índigo africano), tintura de cor azul vibrante e forte, de origem vegetal, extraída das folhas fermentadas da espécie arbórea lonchucarpus cyanescens, é largamente utilizado nos principais ritos do Candomblé.

Aplicado como pintura corporal e de objetos sagrados ou ainda como banho, o wájì representa o equilíbrio, a riqueza, a fartura, a fertilidade a determinação do ser, a transformação do indivíduo e de sua energia, a construção do novo, a potencialidade idealizadora e também a proteção contra forças negativas do oculto.

Quando utilizado para pintar os ìgbá(s) e a cabeça dos ìyàwó(s), o wájì tem o propósito de protegê-los contra a maldição de èléyé, pássaro mitológico ligado às Àjé(s). Conforme os ensinamentos, trata-se de um elemento que livra o orí(s) dos ìyàwó(s) das influências de Ìyámi. É a representação do dúdú ẹjẹ.

Curiosidade: Segundo o artigo “Into the Blue” (on line)[1], a cultura iorubana, em face de sua alta espiritualidade, atribui a tudo e a todos um ser protetor; com isso não é raro encontrar famílias e clãs que possuem santuários dedicados a Ìyá Mapo, divindade protetora de artesãs tintureiras que tem o wájì como sua principal matéria prima. Desta forma, acredita-se que o wájì e tudo o que é feito com ele recebe a proteção especial desta divindade chamada Ìyá Mapo.

Osùn

O osùn é uma substância avermelhada, de origem vegetal, extraída da planta baphia nítida e é muito utilizada nos rituais do candomblé para confecção de objetos sagrados e na pintura dos igbá(s) e dos ìyàwó(s).

O osùn tem como finalidade primordial a transmissão do àṣẹ e também a de livrar o iniciado das influências de Àjé. Assim como o wájì representa a noite, o osùn representa o crepúsculo e todas as energias decorrentes da passagem da noite para o dia e do dia para a noite.

O osùn é um elemento que representa a feminilidade ancestral na sua mais ampla acepção da palavra. Empregado nos rituais de iniciação, significa o pupa ẹjẹ, o sangue primordial que fortalece o (re)nascimento. O osùn é um elemento ligado à maternidade, à gestão e à reprodução.

Atenção! Não se deve confundir osùn com ìròsùn, pó amarelo, também de origem vegetal, extraído da pterocarpus osùn. Este pó é usado para encantamento de objetos sagrados, a exemplo dos mẹrindilogun(s) (16 búzios).

Ẹfun

É um elemento mineral, extraído do calcário branco, para ser utilizado nas pinturas iniciáticas de todos os òrìsà(s), com ênfase para aqueles da linguagem dos funfun(s).

O ẹfun tem propriedades que podem sacralizar objetos e pessoas, usado em banhos, soprado ou em pinturas ritualísticas, pode promover à harmonia, a paz, a paciência, a longevidade, a tranquilidade, a calma; de igual modo, pode expandir, iluminar, despertar, clarear, suavizar.

O ẹfun é usando nas casas de Candomblé para além das pinturas, misturado a outros ingredientes pode criar pós de muito poder na manifestação do àṣẹ. Como elemento primordial, ele representa o funfun ẹjẹ. O ẹfun é entre os três elementos o que representa o dia e também o amòn (barro), elemento fundamental da origem dos seres.

Considerações Finais

Em face da complexidade do tema, procuramos nos ater apenas nas definições, nas origens e nos significados de cada elemento, pincelando muito por alto os usos que cada um deles tem nos ritos do Candomblé.

Sem querer me adentrar aos fundamentos da pintura, gostaria de relacionar a importância do ato com um ìtàn bastante conhecidos no qual se conta que etù (a galinha de angola) deveria, para conseguir se o mais bela entre as aves, ser cordial com todos as pessoas que encontrassem a sua frente. Encontrou Òrìṣànlá, deu lhe tudo o que tinha e ele e, em retribuição, ele a pintou de ẹfun, osùn, afín e wájì. E isso nos faz lembrar a relação que há entre ẹtù e o ìyawo.

Nas expressões da cantiga “bàbá bí a bí ẹ̣tù konken / bàbá bíì a bíì ẹtù konken”, cuja tradução é: Pai, ele nascerá, ele nascerá galinha de angola / Pai, ele será como, ele será como a galinha de angola, essa relação fica mais do que evidente. Mas esse é um assunto para ser aprendido e apreendido em outras situações, especialmente, em diálogos nos terreiros com os nossos àgbá(s).

Sei que esta reflexão pode não ter trazido dados novos e que, possivelmente, não tenha acrescentado muito a boa parte dos irmãos e irmãs versados e versadas nos segredos do àṣẹ, tendo em vista a profundidade que se pode mergulhar quando se trata da pintura como elemento de construção do poder máximo do òrìṣà. No entanto, espero ter aguçado a curiosidade daqueles que intentam imergirem mais profundamente nas entranhas do tema.

Atenção! Não pretendemos com este texto exaurir as discussões sobre as pinturas nos rituais do Candomblé. Se assim o fizéssemos, poderíamos atentar contra aquilo que mais respeitamos: a transmissão do àṣẹ por meio da tradição oral.


[1] . Disponível em: https://insidemymotherscloset.wordpress.com/2015/03/12/into-the-blue/. Acesso: 27 de junho de 2016.
FONTES DAS IMAGENS:
http://folhadocandomble.blogspot.com.br/2012_09_01_archive.html
http://barracaodoze.blogspot.com.br/2012_01_01_archive.html

sexta-feira, 24 de junho de 2016

A CABAÇA: DA CUIA À REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO PARA O CANDOMBLÉ

Por Thonny Hawany

A cabaça, fruto do cabaceiro, é um dos objetos mais presentes nas cerimônias do Candomblé. Por mais que inventem novos materiais, novos utensílios, novos métodos, novas tecnologias, alguns objetos são de uso obrigatório e sua substituição pode causar danos irreparáveis ao culto e às tradições. A cabaça é um desses elementos.

Quando inteiro, o fruto seco é denominado de cabaça, mas ao ser cortado e de acordo com a forma como é cortado, recebe outros nomes em português e também em yorùbá. Se inteiro é cabaça, se cortado é cuia.

A cabaça, nas casas de Candomblé, é utilizada no dia a dia como objeto simples e também como objeto revestido de sacralidade em diversos ritos. Conforme os dicionários de língua yorùbá, a cabaça é chamada de àkerègbè e suas metades, depois de partidas e separadas, de ìgbá (cuia).

Cortada verticalmente, a cabaça se divide em cuias que são utilizadas como objeto onde se faz o pàdé, iguaria votiva preferida de Èṣù no rito do ìpàdé. As cuias servem-se também como utensílio para colher o àbó do pote, para servir o ẹjẹ́ nos ritos de ebó ẹjẹ́ ou para desenvolver outras ações semelhantes.

A cabaça também pode ser cortada rasa (ìgbájẹ), perto do fundo, ou perto das extremidades laterais, para servir alimentos como o fazemos com os pratos. Se cortada para cima do meio, na horizontal, cria-se um recipiente com tampa denominado ìgbàṣe, ritualisticamente utilizado para entregar os elementos e os objetos sagrados à pessoa iniciada por ocasião de sua obrigação de sete anos.

As cabaças pequenas servem como adornos de roupas, ferramentas e paramentas de boa parte dos òrìṣà(s) e podem representar importantes fundamentos descritos nos itá(ns), nos àdùrà(s), nos ọfò(s), nos orin(s) e nos oríkì(s). Ọmọlú, Òsányìn, Òyá e Èsù são exemplos de òrìṣà(s) que carregam pequenas cabaças em suas vestes e paramentas quando estão manifestados e paramentados.

As cabaças dependuradas nas vestes de Ọmọlú representam pequenos frascos contendo porções de cura (remédios). A cabaça com folhas de pèrègún pensa na roupa de Òsányìn representa o recipiente em que esse òrìṣà guardava suas folhas sagradas conforme está escrito no itá(n) que versa sobre o assunto. Já as cabaças que adornam o ọ́gọ́ de Èsù (ferramenta na forma de falo) tem a conotação dos testículos e representam a fertilidade.

É importante lembrar, sem entrar em muitos detalhes, a cabaça cortada ao meio no formato de uma cabeça, transforma-se em um dos elementos importantes para a iniciação de pessoas que não podem ser raspadas por terem nascidas àbìkú(s). Inteira, a cabaça poderá também representar a cabeça de alguém no rito do àṣàṣè que faleceu e que, por motivos alheios a vontade dos vivos, não pode passar pelo rito de retirada do òṣu.

A cabaça inteira vestida com uma malha confeccionada com contas serve-se como um instrumento musical chamado agbé e aquelas de pescoço mais comprido e inteiras servem-se como ṣẹ́rẹ́ (ṣèkerè), instrumento tocado para referenciar Ṣàngó.

A cabaça, cortada ao meio na horizontal, no formato ìgbàṣe, é utilizada como poderoso oráculo onde são guardados segredos que estão intimamente relacionados com o princípio e a existência de tudo o quanto foi criado por Òlòdùmarè. Entre todas as coisas guardas por Ìgbádù, nome que recebe essa cabaça, estão os Odú(s) que representam a existência e o processo de criação do Universo – assunto amplo que merece ser discutido em outra texto.

Em face de todo o exposto e segundo o nosso entendimento, a cabaça não é só um utensílio de muitas serventias, mas a grande metáfora cuja existência se funde integralmente com o nascimento, o desenvolvimento e a morte do todo. Alegoricamente ela representa parte do aparelho reprodutor feminino: o útero, onde nós, os seres da criação, somos forjados e preparados para a vida terrena. Em suma, a cabaça pode ser um simples utensílio doméstico, como também a representação da vida e do construto universal. Essa compreensão dependerá do entendimento e do nível de consciência a que cada um de nós atingimos ao longo de nossa vida. 

Atenção! Com este texto não pretendemos esgotar todo o tema. Ainda que quiséssemos, isso não seria possível haja vista a amplitude que tem.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

REFLEXÃO SOBRE A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO E DO ÀṢẸ

Por Thonny Hawany

Não está muito longe o tempo em que as igrejas cristãs, quase que de modo geral, proibiam que seus fiéis assistissem a programas de televisão, ouvissem rádio, estudassem, lessem livros cujos autores pudessem, de alguma forma, desmentir ou descaracterizar seus discursos alienadores e de pouca profundidade teológica. Como sabemos, em lugar nenhum, está escrito que assistir a programas de televisão, ouvir rádio, estudar ou ler livros constituam algum tipo de pecado. Mesmo não havendo nenhum dogma que proíba, esse subterfúgio é usado ainda hoje, em menor escala, como forma de alienação de adeptos.

Nas religiões de matriz africana, está acontecendo um fenômeno semelhante. Há sacerdotes que, de modo geral, proíbem seus filhos a lerem livros, a consultarem à Rede Mundial de Computares, a assistirem vídeos e documentários que possa contribuir com a aquisição de conhecimento sobre a religião. Há ainda os que não proíbem, mas que, por meio de um discurso que em nada se sustenta, buscam descaracterizar, sem exceção, todo o material publicado em livros, em sites ou em blogs, quase sempre, afirmando que tais conhecimentos são ilegítimos e que os únicos válidos são aqueles obtidos oralmente no seio de suas famílias.

Quando foram publicados os primeiros livros contendo cânticos, rezas, ebós, vocabulário, conceitos gerais da religião dos orixás; a voz de condenação, nos terreiros, era quase que unânime. Não se era raro ouvir os mais velhos dizerem que a tradição estava ameaçada, que a cultura dos orixás estava sendo corrompida, que os segredos estavam sendo banalizados, entre outros comentários.

Para nortear o nosso entendimento sobre o assunto proposto para esta reflexão, a seguir, criaremos alguns problemas que servirão como balizadores do discurso que pretendemos sustentar em nossa tese. São elas: (1) A tradição afrodescendente foi mantida igual e da mesma forma em todos os terreiros do Brasil? (2) Todos os sacerdotes afrodescendentes estão aptos a ensinarem os seus filhos tudo sobre a cultura e sobre o àṣẹ? (3) Todos os livros escritos a respeito das religiões afrodescendentes mantêm intactos os dogmas, preceitos e fundamentos construídos ao longo de milênios? (4) Tudo o que está publicado na Rede Mundial de Computadores é confiável do ponto de vista das religiões de matriz africana? (5) O conhecimento adquirido por intermédio das mídias diversas carrega em si o àṣẹ como essência de maior poder das religiões de matriz africana?

 Sobre a primeira pergunta que indaga a respeito da manutenção das tradições nos terreiros de candomblé do Brasil, a experiência nos faz dizer que: nem mesmo na África a tradição é a mesma de um país para o outro, de uma cidade para a outra, de um estado para o outro, de uma aldeia para a outra, de um clã para o outro, de uma família para a outra. No Brasil, isso não é diferente, a linha geral da tradição foi sim mantida, e é isso que nos faz pertencer a um grande grupo sócio-político denominado de “Povo de Terreiro” ou “Povo de Àṣẹ”. No entanto, cada casa de àṣẹ, segundo suas necessidades históricas, geográficas, temporais, sociais e políticas adaptou e construiu sua forma de entender as tradições afrodescendentes.

A respeito da segunda questão, acreditamos que nem todos os sacerdotes estão preparados para a transmissão do conhecimento e do àṣẹ. A lacuna deixada pelos mais velhos, que morreram sem transmitir o que conheciam, tem sido considerada, por diversos autores, como a grande vilã da falta de conhecimento de parte da geração atual. A cultura africana e o conhecimento afro-religioso são complexos e profundos; por isso, não acredito que haja sacerdotes com a faculdade de transmitir tais conhecimentos de modo a exauri-los. A tradição oral, por si só, não é garantia de manutenção do conhecimento adquirido, nem mesmo de resgate daquele que foi perdido. A história é nossa maior testemunha. É notória a importância que tiveram e têm os pesquisadores de fora e de dentro da religião para o resgate de muitos conhecimentos ameaçados de esquecimento.

Sobre os livros cogitados na terceira questão, não acredito que haja neles todo o conhecimento a respeito de uma cultua tão rica; no entanto, é possível dizer que a partir da publicação, no Brasil, das obras acadêmicas de Pierre Fatumbi Verger, de Roger Bastide  e também daquelas escritas pelos chamados autores litúrgicos, os olhos do Povo de Terreiro abriram-se para novos rumos e para novas perspectivas.

Os livros, quase sempre, refletem o ponto de vista dos seus autores e, necessariamente, podem não refletir o ponto de vista dessa ou daquela família de àṣẹ. Nos livros não está tudo o que se pode saber sobre a cultura afrodescendente, mas há neles o ponto de partida para se chegar a uma compreensão que, de modo egoísta, sempre foi negada a quem quer e precisa aprender para dar continuidade ao legado dos òrìṣà.

Em se tratando da questão que indaga sobre a Rede Mundial de Computadores, como fonte de conhecimento, seria ignorância minha e de quem o fizer negar a importância da internet como fonte de pesquisa e de aquisição de conhecimento, seja ele de qual natureza for. No entanto, em face da diversidade de entendimentos e das várias interpretações que foram feitas a partir dos elementos culturais trazidos pelo africano para o continente americano, as diversas postagem disponíveis na internet podem não refletir um conhecimento real conforme a ótica de cada família de àṣẹ.

Isso significa dizer que: o que está disponível na internet pode ter validade para uns, mas não para outros. Além do mais, ainda é bom constar que a inventividade humana e sua necessidade criativa podem levar um dado autor a produzir e a publicar algo que apenas possui aparência de legítimo, mas que nada tem a ver com os fundamentos afrodescendentes guardados e transmitidos, de geração a geração, pelas principais famílias representantes da cultura africana no Brasil. Em síntese, não é inteligente proibir filhos e filhas de santo a pesquisarem conhecimentos na internet, mas recomendar cautela aos que se valem da internet como fonte de pesquisa para não se embriagarem de engodos como se fossem verdades, é obrigação de todos os sacerdotes.

A quinta e última questão é bastante subjetiva e, tanto por isso, não seria possível construir aqui uma resposta que não atendesse à subjetividade do próprio questionamento. Àṣẹ é poder, é energia, é essência do òrìsà, é legado de nossa ancestralidade, é virtude do homem que o merece.

As mídias diversas (livros, apostilas, sites, blogs) podem até conter farto conhecimento sobre cultura afrodescendente, sobre religião de matriz africana; podem até definir o que se deve entender por àṣẹ, contudo não serão capazes de transmitir o àṣẹ como verdadeira essência da ancestralidade. Àṣẹ não se empacota, não se embala, não se envaza, não se embrulha. O àṣẹ não é uma porção de pó, um líquido colorido ou incolor em vidro, um talismã, um objeto qualquer, algo que se vende ou se compra em loja de artigos religiosos.

O àṣẹ se sente e se é feito sentir. Trata-se, pois, de uma suprema célula de energia invisível que é transmitida de geração em geração, por meio do contato social e, especialmente, na prática dos atos religiosos. É nos atos de passagem que o àṣẹ de nossos ancestrais se converge e se mistura com a nossa própria essência de vida. Uma vez transmitido a alguém, viverá o àṣẹ para sempre em nossos corpos físico e espiritual, individual e coletivo.

Todas as palavras (escritas ou faladas) produzem conhecimento porque são vivas ideologicamente; mas somente aquelas proferidas nos ritos e atos de passagem do Candomblé podem transmitir conhecimento e àṣẹ ao mesmo tempo.

Assim sendo, concluídos que o conhecimento a respeito de cultura afrodescendente e de àṣe, na sua mais ampla acepção da palavra, não deve ser nem tanto por tradições orais, nem tanto pelas lições escritas e veiculadas pelas variadas mídias. A união entre o conhecimento científico e o religioso seria garantir de elucidação de toda a verdade sobre o criador e toda a sua criação. As tradições orais convergidas às publicações nas diversas mídias podem representar a busca pela perpetuação de uma fé que já vive há milênios.

Nós, sacerdotes afrodescendentes, a exemplo de alguns inseguros, não devemos temer os livros, a televisão, o rádio, os jornais, o celular, os satélites, o computador, a internet. Devemos sim fazer uso disso tudo como instrumento de operacionalização e otimização dos nossos cultos, das nossas tradições, da transmissão do àṣe que nos foi legado pelos nossos ancestrais.